Galeria dos Contos

Cachinhos Dourados

Era uma vez, na época em que a dona Carochinha contava histórias, uma família de três ursos. Viviam contentes, cada um com seus gostos, na floresta de Florificus. Ermelina era a mãe da família: dona de casa, adorava ouvir e dançar música sertaneja enquanto varria a casa. Seu marido, Ernest, não gostava de dançar, portanto a mulher, ops, espera... Quero dizer... A ursa dançava com sua vassoura. As más línguas diziam que aquela vassoura era um príncipe transfigurado e que Ermelina era na realidade uma bruxa animal que o transformara em tal objeto para tê-lo como amante -- o que o imaginário popular pode criar quanto a um pacato casamento é de alarmar, não é mesmo? Mas não entrarei em detalhes, cada um pensa o que quiser...

Pois bem. Ernest era pescador, trabalhava às margens do rio Mequezelema, situado quase à saída da floresta. Pescava em geral salmões de boa qualidade e os vendia, em feira livre, com selo de aprovação da AFVISA (Agência Florestal de Vigilância Sanitária). O filho do casal, Elezoé, tinha oito anos. Era animado, brincalhão e amante da natureza.

Bom, a família de ursos em geral se dava bem. Não havia grandes confusões, e o filho respeitava os pedidos dos pais. Um dia, Ermelina pediu ao ursinho que comprasse alguns itens para fazer um gostoso lanche da tarde.

-- Compre cravo, canela, açúcar do Tio Sapão e um punhado de suspiros, ok? -- disse a mãe a Elezoé, dando-lhe algumas moedas. O urso menor concordou e, já na varanda, parou para ouvir uma última recomendação.

-- Cuidado com lobos, hein? Eles podem ser bem manipuladores quando querem...

-- Mamãe, pode deixar, não serei a versão masculina e "ursal" da Chapeuzinho Vermelho. -- comentou, dando uma risadinha. A mãe olhou para ele sem saber se ria ou se lhe dava uma bronca. Antes que a ursa decidisse, Elezoé deixou a residência e tão logo chegou à mercearia do senhor Currupaco, um papagaio idoso com muito bom humor. Comprou o que lhe cabia e saiu agradecendo. No caminho de volta, uma garotinha passou por ele e deu uma piscadinha.

-- Oi, gato. -- deu outra piscadinha com um sorriso e sumiu depressa, cantarolando música do Mussunga. A menina apresentava amplos cachos dourados e era meio piriguete.

-- Mas eu sou um urso! Respeite minha espécie, lutamos por voz na nossa classe! -- gritou o ursinho, com a mão em punho e braço estendido para cima. Não entendia por que fora confundido com um gato. "Será que ela acha que sou parecido com o Gato de Botas?", pensou Elezoé. O urso menor chegou a sua casa, entregou os produtos à mãe e foi brincar intrigado. Algumas horas depois, Ermelina fez um amplo lanche da tarde com iguarias, sendo uma delas um gostoso mingau. Colocou três tigelas de tamanhos diferentes repletas do líquido saboroso e alguns pães e doces sobre a mesa. Chamou sua família para comer. Perceberam que o mingau estava muito quente. O pai teve uma ideia:

-- Vamos dar um rápido passeio enquanto esfria nosso mingau? -- convidou Ernest, em seu dia de folga. Ermelina e Elezoé concordaram e saíram.

Agora nosso lado da história muda. Lembram-se da menina de grandes cachos dourados que apareceu para o ursinho? Então, por conta de sua vasta cabeleira, era conhecida por seus amigos e familiares como Cachinhos Dourados. A garota era adolescente, gostava de ir a festas e dançar até o clarear da madrugada. Suas roupas não a classificavam como... Como podemos falar?... Como moça de família, mas parecia que seus pais não se importavam com aquilo.

Enfim, a jovem Cachinhos Dourados adorava passear para espantar as mágoas e os fantasmas do passado e quem sabe tentar deixar para trás seu lado festeiro.

-- Adoro festas, daquelas que a gente volta no raiar do dia e grita igual uma louca... -- dizia, pensativa e solitária, andando pela floresta à procura de algo para se entreter. Viu, por arte do destino, a família de ursos saindo de uma casinha assobradada. Decidiu então "conhecer" a tal casa. Aproximou-se, quando ninguém estava por perto; olhou a porta, que se revelava entreaberta. Sem titubear, adentrou. Ao ver o lanche dos ursos à mesa, deu um sorriso.

-- Oh, mas é um sonho. Esses ursos lembraram do Fantasma Gaspar e deixaram comida para ele... Interessante... -- a garota olhou para os cantos e não viu alma viva nem alma penada. -- Gaspar deve estar atrasado. Vou aproveitar um pouco, porque hoje vou para uma balada sertaneja e preciso me manter alimentada.

Sentou, pois, no lugar do pai de família e sorveu um pouco do mingau.

-- Ai! Está muito quente!

Foi para o assento da mãe:

-- Eca! Tem gosto de sorvete de anchovas!

Por fim, sentou-se na cadeira de Elezoé e provou o último mingau:

-- Hmmmm... Delicioso! -- disse, sem pudor. Tomou velozmente o líquido cremoso e continuou a comer. Quando acabou, tinha engolido quatro baguetes, um mingau e três pães doces. Não sei como a menina conseguira comer tanto! Sua fome parecia igual à do gigante de João e o Pé de Feijão... Mas, como dizem: a adolescente estava em período de crescimento, por isso a fome... Enfim, cansada de se empanturrar, foi à sala dos ursos e pulou no sofá. Ficou atirada ali por algum tempo, sem se preocupar com a possível volta da família.

-- Quem mandou deixarem a porta aberta... -- dizia com desdém.

Eu particularmente não sei como nenhuma barreira mágica a impediu de entrar na casa, pois a vassoura de Ermelina mantinha-se de cabeça para baixo ao lado da porta. O mundo mágico não a devia considerar como visita chata... Se bem que nem visita ela era, convenhamos... Era uma invasora de domicílios! Sim, senhor! Podia até, quem sabe, ser presa pela comitiva real mais próxima... (O que andam ensinando para esses jovens? -- pergunto-me sempre.)

Mas continuando... Cachinhos Dourados decidiu subir a escada da casa e conhecer seu segundo andar. Encontrou, ao pisar o último degrau, um quarto com duas caminhas (aviso: qualquer semelhança com branca de neve é mera coincidência). Deitou-se em uma cama de solteiro, a do ursinho, e achou-a dura demais.

-- Ai... Não gostei! Vou tentar a outra! -- levantou-se.

-- Muito melhor! -- disse, já acomodada em uma ampla cama de casal. A garota não dormia nem um pouco cedo, então, bastou sentir a maciez dos travesseiros, que caiu em um sono profundo.

Voltando aos três ursos, estes observaram o coelho de Alice no País das Maravilhas passar correndo, anunciando as cinco horas da tarde.

-- Nossa, como está tarde para nosso lanche! -- comentou Ermelina.

-- Vamos voltar! -- falou a ursa. Os dois ursos concordaram. O caminho de volta não demorou muito. Logo chegaram à varanda.

-- Que estranho... Não me lembro de ter deixado a porta aberta! -- comentou Ernest. -- Fiquem atrás de mim, que se for ladrão eu dou nele um chute que aprendi com o mestre Louva-a-deus!

A família entrou na morada, com o pai à frente imitando seu professor de kung-fu. A mãe vinha logo atrás imitando uma gueixa guerreira e o ursinho vinha por último, de óculos escuros, sentindo-se o chefe do balacobaco. Olharam um pouco e não viam alguém, mas perceberam que haviam mexido em suas coisas.

-- Comeram nosso lanche! -- disse Ermelina, atordoada.

-- Tomaram meu mingau! -- comentou Elezoé.

Ernest parecia irritado com toda a desordem. -- Escutem! -- disse baixinho. -- Tem barulhos vindos de lá em cima...

-- Parece o som do pé grande! É o cão chupando manga! -- gritou o ursinho Elezoé assustado. -- Mamãe! Ó, mamãe! Foi muito bom te conhecer! Espero que nos encontremos no céu! Adeus, papai, também foi bom te conhecer! -- o ursinho estava visivelmente perturbado.

-- Deixe de ser besta! -- disse, ríspida, a mãe. Os três ursos subiram, sem ousar fazer barulho, as escadas e encontraram Cachinhos Dourados dormindo.

-- QUEM OUSA DORMIR NA MINHA CAMA, FI FÓ FU. Não, espera! Fi fó fu é João e o Pé de Feijão... MAS QUEM OUSA DEITAR NA MINHA CAMA? -- bradou Ermelina, com aquele típico jeito de urso bravo... Cachinhos Dourados levantou num pulo.

-- QUEREM ME MATAR! CHAMEM OS BOMBEIROS, AS BRUXAS MAROTAS, OS LEPRECHAUNS SORRIDENTES! SOCORRO! -- gritou.

-- Não queremos te matar... Mas o que pensa que está fazendo, garota? -- disse Ernest.

-- Ahh, eu vi a porta aberta e decidi dar uma espiada... -- comentou, com um sorriso envergonhado.

-- Pois vá dar uma espiada num bom livro de histórias... Que abusada! -- disse Ermelina.

Cachinhos começou a dar passinhos para o lado e, quando menos os ursos esperavam, pulou pela janela e desceu até o térreo se segurando na trepadeira da casa.

-- AH, MAS NÃO VAI MESMO! -- disse Ermelina, sentindo-se desrespeitada. A ursa deu uma cambalhota com o marido pela janela e planaram graciosamente no solo. Começaram a correr atrás da festeira Cachinhos Dourados. O ursinho, por sua vez, não sabia artes marciais, mas queria acompanhar a "Corrida dos Ursos sem Piedade". Pulou pela janela de outra parede e caiu em uma carroça de feno puxada por um burro. Elezoé bateu as rédeas, e lá estava ele seguindo, a toda velocidade, os pais e a menina arteira.

Ernest apertou o passo e por um triz não pegou Cachinhos pelo braço. O destino, no entanto, não conspirava a favor da garota, que acabou batendo numa vaca leiteira e caindo sentada.

A vaca mugiu alto, mas nada fez. Apenas admirava a falta de destreza da loirinha.

-- Por favor, não me mate! -- gritou Cachinhos, desesperada.

Os três ursos pararam à frente dela e lhe deram uma lição.

-- Menina, somos pacíficos demais para fazer algo contra você, mas a senhorita passou dos limites! -- disse Ermelina. -- Peça desculpas e não faça mais isso, está bem?

A garota fazia um bico gigantesco: negava-se a aceitar.

-- É muito grave o que fez, invadiu nossa casa, comeu de nossa comida... -- continuou Ernest.

A garota, muito da malcriada, decidiu escapar novamente. Voltou a correr igual a uma desvairada, mas mais uma vez o fado não ajudou: bateu em uma irritada bruxa, que passou a perseguir a menina. Tentava atingir Cachinhos com seus feitiços.

-- SUA ENXERIDA! Agora que vou ter meu ensopado! -- gritava a mágica mulher.

Dourados conseguiu escapar da bruxa, mas convenceu-se de que tinha tido atitudes erradas. Em sua casa, pediu para sua mãe preparar um gostoso bolo. Quando pronto, colocou-o numa cesta e escreveu um bilhete:

"Cara família urso, desculpe-me pelo meu jeito. Prometo nunca mais repetir o que fiz."

Cachinhos mandou o Correio dos Ratos enviar a cesta (eram ratos de extrema confiança: não comiam suas entregas). Dias depois, a garota foi convidada a ir à casa dos ursos para iniciar uma amizade. Após isso, passou a organizar festas sertanejas junto da ursa mãe. Cachinhos aprendeu que pedir desculpas muitas vezes era mais prático e fácil. E, no final das contas, seu lado festeiro estava contribuindo para sua renovação. 

FIM

Autor: André Pereira Falcão

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